Quando FHC saiu do governo, escrevi o artigo “Uma obra de arte política”, descrevendo a habilidade da sua estratégia de governabilidade – e o desperdício de não ter sido utilizada para um plano de desenvolvimento amplo.
A estratégia consistia em cooptar chefes regionais com migalhas do poder, mantendo incólumes os pilares centrais do governo.
Mas esta era apenas a perna conhecida do modelo criado por FHC.
A peça central, obscura, era o controle estrito sobre o Ministério da Fazenda e toda a estrutura debaixo dele – Banco Central, CVM (Comissão de Valores Mobiliários), Secretaria da Receita Federal (SRF).
Não se tratava apenas de manter o controle técnico sobre a economia. Era nesses ambientes que se fortalecia a perna oculta do sistema de poder que estava sendo montado: a criação de um modelo sistêmico de aliança com o crime organizado (de colarinho branco), que se expandia na indústria de offshores, de bancos de investimentos, de gestores de recursos.
A maneira como Gustavo Franco autorizou as operações do Banco Araucária, os leilões da dívida pública (sempre com dúvidas sobre sua transparência), o caso emblemático do Banco Santos – desde 1994, um banco quebrado que, mesmo assim, enviava centenas de milhões de dólares para o exterior, com autorização do Banco Central – e, especialmente, o caso Opportunity, demonstravam uma ampla cumplicidade entre autoridades e transgressores. A estrutura de fiscalização do Estado ficou totalmente imobilizada pelas ordens que emanavam do centro do comando financeiro do governo.
O controle do Estado
Em entrevista que concedeu ao Terra Magazine, FHC definiu a Satiagraha como uma luta pelo controle do Estado. Estava completamente certo.
Quando o PT assumiu o poder, seguiu ao pé da letra a receita de FHC – tanto nos acordos fisiológicos inevitáveis, quanto na tentativa de cooptação desses grupos barras-pesadas.
Esse trabalho foi conduzido por dois estrategistas políticos de Lula, José Dirceu e Antonio Palocci. Palocci atuava especialmente através do Conselhinho (o Conselho que julga os recursos dos agentes financeiros) e da CVM – nas gestões Marcelo Trindade e Cantidiano. Livra-se o Banco Pactual de autuações severas por crimes fiscais, livra-se Dantas por crimes de lavagem de dinheiro e de desobediência às regras cambiais brasileiras, permite-se que o Banco Santos se torne o maior repassador de recursos do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) em uma leniência sistemática.
O Opportunity passa a financiar Delúbio Soares, através da Telemig Celular e Amazonia Celular. Palocci tornou-se próximo de André Esteves, do Banco Pactual. E o BC mantinha olhos fechados para os crimes de lavagem de dinheiro.
O Sistema Brasileiro de Inteligência
Esse esquema começa a esboroar não apenas com o chamado escândalo do “mensalão”, mas pela iniciativa histórica do Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, de montar o Sistema Brasileiro de Inteligência, de forma paralela com o que ocorre em outros países, quando os Estados nacionais se organizam para enfrentar a internacionalização do crime organizado.
Nesse momento, começa a ruir o modelo de governabilidade baseado na aliança com o crime organizado. Com o Sisbin, o funcionário do BC não responde mais à sua diretoria mas a uma estrutura superior e interdepartamental. O mesmo ocorre com outros funcionários da área econômica. O controle imobilizador acaba.
Sentindo que o processo era inevitável, e escaldado pelo “mensalão”, Lula dá ampla liberdade para o aparato do Estado se organizar.
Pela primeira vez, o Estado começa a cumprir suas funções e os funcionários públicos a se libertar das amarras impostas por esse pacto espúrio. Aumenta a colaboração com as forças internacionais anti-crime, surgem as grandes operações combinadas de combate ao crime organizado. Fiscais da Receita passam a conversar com a Polícia Federal, a Coaf troca informações com o Ministério Público, a ABIN é acionada. E dessa integração começa a nascer a esperança de uma mudança estrutural não apenas no combate ao crime organizado, como na redemocratização do Estado e no aprimoramento do jogo político.
Era inevitável o choque com a estrutura de poder montada. O ovo da serpente já estava incubado, eram muito profundas as ligações entre o crime organizado, estruturas de mídia, instâncias do Judiciário, Congresso Nacional, Executivo. O país havia se criminalizado.
Pior, criminalizou-se com status. Chefes de quadrilha passam a ser tratados como brilhantes executivos, aproximam-se de grupos de mídia, ajudam na capitalização de alguns deles.
Um dos fatores que leva à inibição do crime é a condenação social do criminoso, a não aceitação de sua presença nos círculos sociais. Por aqui, Daniel Dantas continuou a ser aceito por praticamente todas as lideranças políticas. O ato comprovado de tentar subornar um delegado não mereceu a condenação explícita de ninguém. Pelo contrário, Dantas é elogiado pelo mentor máximo da oposição, FHC, e defendido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal.
É essa lógica vergonhosa, para nós brasileiros, que explica toda a ofensiva para desmontar o Sistema Brasileiro de Inteligência.
Mudanças irreversíveis
A questão é que o mundo mudou. O crime organizado de colarinho branco tornou-se ameaça mundial, combatido por todos os países civilizados. A Internet rompeu com a barreira da informação. Pode custar mais ou menos, mas será impossível ao país não se curvar à grande onda anti-crime que se seguirá à queda da economia global.
Algumas vezes critiquei a superficialidade de FHC, sua incapacidade de perceber os ventos, os grandes fatores de transformação que permitissem lançar o país rumo ao desenvolvimento. Bobagem minha! Seu foco era outro.
É por isso quem para ele, Protógenes é amalucado e Dantas é brilhante.
A história ainda cobrará caro de FHC por ter institucionalizado o crime organizado no centro do jogo político brasileiro.
Pescado integralmente do blog do jornalista Luis Nassif, publicado às 15h de hoje.
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