A crise é dos três poderes

lula_drinkdolarAumentar juros, impostos e gastos públicos: a epopéia de um governo delirante

“Não basta acabar com os paraísos fiscais: a movimentação de capitais tem que ser regulada por cada país, em função de suas prioridades socioeconômicas, e não em função da defesa do lucro máximo dos detentores de capitais privados.”

Paul Singer

Por Waldo Luís Viana*

Sempre fui um economista de linha hiper-heterodoxa. Sonho com “destruições criativas”. Causo frouxos de riso em meus colegas, quando afirmo que o sol nasce a leste todas as manhãs sem pagar nada à banca internacional. E a Lua, por enquanto, não corre o risco de ser explorada por nenhuma empresa transnacional…

Opõem-se-me os mestres que sempre tive dizendo que a Economia, embora se ufane de ser uma ciência (não no sentido físico-bioquímico), é um modo de administrar “bens escassos”, que diferem dos bens livres encontrados (ainda) na natureza. Divirjo dessas idéias caducas, dizendo exatamente o contrário: os bens são abundantes, mesmo os construídos pelo homem, mas alocados de modo desigual, irracional e egoísta.

Argumentam os adeptos da escola marginalista que o consumidor é racional, aproveitando-se dos seus bens e haveres na melhor relação possível de custo-benefício. Outra mentira. Numa sociedade pós-capitalista, onde as necessidades de consumo são artificialmente criadas, em que a propaganda vicia o homem desde o berço, não há decisões racionais de consumidores simplesmente automáticas. Se assim fosse, os departamentos de marketing e os consultores econômicos não amealhariam fortunas…

Aprendemos, nos bancos escolares, as teorias da firma e da concorrência perfeita. Nova balela, porque não há concorrência perfeita, mas apenas a prevalência social no mercado do mais forte, hoje não quem tem a força bruta, mas a inside information, e forma grupos de empresas, mega-empresas ou holdings, que fingem concorrer entre si, depositando as receitas não operacionais nos mesmos lugares, em paraísos fiscais ou no mercado “livre” (esses sim!) de capitais voláteis.

Ensinam-nos a falácia da escolha entre canhões e manteiga, esquecendo-se de que os pactos orçamentários são decididos por regimes democráticos extremamente deficientes em matéria de representação. Em geral, as escolhas dos governantes não são as mesmas dos cidadãos, alijados das decisões, protegidas por votos que geram mandatos apequenados pela corrupção e depreciados em legitimidade pelo tempo.

A economia tem adjetivo: é política. Quando vemos seus estudiosos construírem complicados modelos matemáticos, teorias dos jogos e outras abstrações, podem ter certeza de que tudo isso é criado para que o mundo não mude em nada. Matemática econométrica é delírio e escudo de banqueiro. As teorias neoliberais admitem tudo, menos que se retire dos ricos a possibilidade de roubar e dos pobres a de serem eternos reivindicantes. Esse é o cerne da “democracia ocidental”.

A pedra de toque de suas teorias é “não existe almoço grátis”. Pois ouso dizer o contrário: o almoço grátis é o mais gostoso, mesmo que os insumos sejam pagos por uma pessoa ou por um grupo, a comida seja preparada por uma pessoa ou várias, existe o prazer do esquecimento, da solidariedade e o sepultamento do egoísmo. Lembrem-se de Cristo, na Montanha, ao multiplicar os pães e peixes…

Logo dirão: esse esqueceu a natureza humana. É o egoísmo e a felicidade graças à destruição do outro que conformam a sociedade capitalista! E logo aparecem, novos delírios, a superação do regime econômico pela luta de classes pelo socialismo, que instaura uma ditadura para defender os interesses do homem social, com justificada (para os grupos dominantes) repressão política, polícia secreta, paredão, fuzilamentos e tudo o mais.

A economia “real” ceifou 6 milhões de judeus, durante o nazismo, pela justificativa torpe (que está retornando à Europa hoje, em cima dos imigrantes) de que faltam empregos e espaço vital; a II Guerra matou 50 milhões e o ditador Stálin (tão aclamado por alguns ortodoxos) desintegrou cem milhões de pessoas. Não temos dados precisos sobre as mortes na China de Mao Tsé-Tung, mas, com certeza, equiparam-se aos índices do ditador soviético. Os genocídios posteriores no Sudeste Asiático, Coréia, Vietnam, Camboja e Laos, com a ajuda francesa e norte-americana, além dos massacres dos povos que compuseram a forçada composição de nacionalidades na antiga União Soviética, na Iugoslávia de Broz Tito e na Romênia, de Nicolau Ceausescu, cujas atrocidades fariam arrepiar o conde Drácula – compõem o quadro trágico do século XX: o mais sanguinolento e trágico de toda a história.

Nos livros de Economia não são estudados tais problemas, sumidos completamente em favor de agregados monetários, contábeis e industriais. A macroeconomia não reconhece o homem e sua selvageria e a microeconomia só conhece o controle da velocidade das mudanças do dinheiro entre pessoas e grupos, os juros compostos e as oscilações do mercado. Ambas não têm compromisso com a sobrevivência da humanidade, com a natureza e o meio ambiente.

Tentando coibir esse capitalismo tão selvagem e parecerem modernosos, algumas empresas e governos, muito timidamente, estão falando em balanço social e “accountability” (espécie de prestação de contas à sociedade em nome do interesse público). Fora disso, quem produz armas, não quer saber o que isso possa resultar em matéria de mortes e desastres ambientais; quem produz petróleo, não deseja entender no que isso afeta a biosfera e a camada de ozônio; quem produz automóveis não se interessa pelos índices de poluição e destruição da segurança dos cidadãos nas estradas e cidades. A sociedade das armas, do petróleo, do consumo, do luxo e do lixo contribui, enfim, para  a futura destruição da humanidade como espécie. Com certeza, nesse quadro, nem os ricos se salvarão…

O ouro, entesourado, continua sendo relíquia bárbara. Não serve para nada, a não ser para assegurar pretensa estabilidade de mercados, inseguros por essência a qualquer correria. Como os mercados são movidos não por credibilidade, mas pela falta dela, as desconfianças conduzem às oscilações e a ciclos dolorosos de depressão econômica. A economia virtual superou a real nos países capitalistas e essa credibilidade poderá ruir a qualquer momento, como castelo de cartas. Essa é a esperança do terrorismo islâmico para se vingar, um dia, do grande Satã, que explora o Oriente Médio até hoje, com um sorriso nos lábios. E Satã chama-se Tio Sam e seus colaboradores…

Do ponto de vista epistemológico, também são falsos os fundamentos da Economia, que se propõe a analisar o presente e o futuro em condições “coeteris paribus”, isto é, se as coisas permanecerem como estão. Só que as coisas, nobres leitores, jamais permanecem como estão, haja vista as provas da teoria da relatividade e do princípio quântico da incerteza no mundo ao nível das partículas. Se a Economia luta para que seja irremovível o egoísmo humano, petrificado como um osso de dinossauro, há de perder no confronto com a mesma realidade, mole e mutante, apesar de todas as agências norte-americanas de risco e investimento.

Também não existe a tal “mão invisível”. Contra esse mito, espécie de deus ex-machina, um demiurgo substituto de Deus, soergueram-se vários estados intervencionistas, corrigindo os males das teorias (neo)liberais por uma proposta de “Estado de Bem Estar”, vencedora na Europa de pós-guerra, com o Plano Marshall, mas que já morreu. Tentou, de maneira infrutífera, através da intervenção do Estado, negar a existência da mão invisível, que corrigiria a sociedade pelo egoísmo de todos, mas gerou morte, fome, destruição, guerras e a sobrevivência do mais forte. Infelizmente, nem o keynesianismo de resultados emplacou…

Nesse contexto, o que faz o governo brasileiro, aquele que foi sem nunca ter sido ou nunca dantes na história deste país, como queiram escolher? Aposta no egoísmo neoliberal, com pitadas de cestas básicas e distribuição de migalhas de renda compensatória no bolsa-família. Para compensar o que não foi feito em termos de infra-estrutura, inventa um Programa de Aceleração do Crescimento que precisa de mais cinco anos para deslanchar, se os empreiteiros não comerem o dinheiro todo.

No meio tempo, o povo brasileiro irá sofrer o impacto da crise mundial e da falência da maneira conservadora e ortodoxa de gerir a economia internacional. Os grupos de nações que se reuniram em uniões, as mega-empresas que se fundiram em gigantescos polvos, são assimétricos e beligerantes e, mesmo assim,  não conseguem controlar o fenômeno mais dantesco da história do século XXI: o dinheiro está sumindo, está se tornando, finalmente, uma entidade virtual e os acionistas passaram a ser possuidores de papéis que perderão consistência  de maneira gradativa.

De forma primária, o governo brasileiro vem utilizando-se da tecnologia econômica mais atrasada, desde os tempos das jamais cumpridas cartas de intenção ao FMI: trocando reais, comprados aqui pelos maiores juros do planeta, e reservando-os em dólares podres no exterior, cevados a 3% em juros de face. No front interno, prepara-se para o alargamento da inflação aumentando juros e impostos, porque um governo delirante com a própria imagem não pode refrear gastos públicos em época de eleições. Enxugar a máquina, desaparelhar e desprivatizar o Estado por aqui? Nunca. E todo mundo sabe, pela lei de Fischer, que dinheiro jogado no mercado e não enxugado pela poupança, gera inflação de demanda e, depois, inflação de oferta, com estagnação.

E além disso, existe a possibilidade iminente de invasão da Amazônia pelos mesmos países que desejam perpetuar seus pendores imperialistas e jogam despudoradamente em nossa bolsa de valores. Se houvesse uma taxação honesta desses haveres voláteis, que circulam em velocidade de hiper-espaço pelo mundo, como sugerido a tempos pela “taxa Tobin”, não correríamos o perigo real de soçobrar numa espécie de “titanic de esperanças”: um país do futuro, cheio de reservas de petróleo a explorar, cuja elite patrimonialista e ausente planeja – agora com os recursos da Internet – continuar roubando o Erário, eternamente.

E assim ficamos, com o presidente e seus 55 ministérios os mais otimistas do mundo, aguardando a sensação de poeira queimando as franjas do apocalipse…

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* Waldo Luís Viana é escritor, economista e poeta e fez há quase um ano esse artigo profético. Os poetas sabem ver na escuridão…

Rio de Janeiro, 15 de junho de 2008.