Mario David Andreazza é o maior exemplo da seriedade e da honestidade com as quais os militares governaram o Brasil. Como os leitores poderão ver no texto abaixo, transcrito integralmente da Revista Veja, ele viveu com simplicidade e não desviou um centavo dos trilhões de dólares que movimentou nos dois ministérios que ocupou. Aqueles que gritam ter havido corrupção no governo militar, que apontem um coronel, tenente, sargento, ou qualquer outro militar de qualquer das três armas com fortunas em paraísos fiscais e imóveis no exterior. Se houve corrupção nos governos militares, não foi praticada por militares, mas por civis que se aproveitaram da situação para corromper e enriquecer ilicitamente.
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Câncer mata Andreazza, o ministro das pontes e estradas, que chegou a sonhar com o planalto.
Integrado à maioria das conspirações militares dos anos 50, em 31 de março de 1964 o coronel Mário David Andreazza tomou um bom de que daria muitas voltas, algumas triunfais. Era o bonde do ciclo dos presidentes militares. No 15 de março de 1985, quando o bonde – apedrejado-e estacionou como sucata de um triste terreno baldio, Mário Andreazza foi um dos últimos passageiros a descer – a maioria de seus antigos companheiros de viagem estava embarcada na votação da chamada Nova República. Na quarta-feira passada, quando Mário Andreazza, morto por um câncer no pulmão, foi enterrado no cemitério São Batista, no Rio de Janeiro, ocorreu uma cena simbólica. Personalidade ligada, de forma indissolúvel, o regime de 1964, foram seus companheiros do bonde 31 de março, e que hoje integram o primeiro escalão do governo do presidente José Sarney, que seguraram a carreta com seu caixão.
Acompanhado por 300 pessoas, entre as quais 15 ministros de governos passados e outros cinco que integram a equipe do presidente José Sarney, o funeral de Mário Andreazza foi uma cerimônia com momentos muito delicados. Com seu temperamento folclórico e inconveniente, o ex-presidente João Figueiredo demonstrou, no cemitério São João Batista, que circula pelo mundo dos vivos – mas parece dialogar com os mortos. Uma repórter do Jornal do Brasil fez, ao longo do velório, uma pergunta banal nessas situações. Quis saber se ele havia “Sentido muito a morte do amigo”. “Isso é pergunta que se faça”, respondeu o ex-presidente. “Eu só não lhe dou uma resposta por que você é uma moça”, acrescentou.
Desmancha-velório
Em 1974, quando estava no ponto mais alto de sua gestão no Ministério dos Transportes, onde chegou em 1967 pelas mãos do presidente Arthur da Costa e Silva, atravessou período em que o país esteve sob o regime da Junta Militar de 1969, e só saiu com a posse de Ernesto Geisel, Andreazza cruzou a ponte Rio-Niterói num passeio inaugural bordo de um Rolls-Royce em companhia do presidente Emílio Médici. Na ocasião, Figueiredo estava bem perto de a Andreazza: sentado no banco da frente, ao lado do motorista, como chefe da Casa Militar. Dez anos depois, no final da traumática convenção do PDS onde acabou massacrado pelos votos do deputado Paulo Maluf, seu rival na disputa pela vaga de candidato a presidente contra Tancredo Neves, Andreazza ficou sozinho na hora de enrolar a bandeira de campanha. Figueiredo, que simularam apoiar seus movimentos contra Maluf na sucessão, terminou para abandoná-lo. No cemitério, a grosseria do ex-presidente confirmou sua nova especialidade pública – a de desmancha-velório. Causou mal-estar entre os presentes e boa parte deles preferiu sair de perto. Em 1985, no velório do ex-presidente Emílio Médici, a presença de Figueiredo também fora motivo de outra cena constrangedora. “Vai lá, canalha”, disse-lhe Eduardo Médici, neto do ex-presidente, quando Figueiredo chegou para o velório no Clube Militar.
“Andreazza começou a morrer quando foi derrotado na convenção do PDS”, afirma o ex-ministro Camillo Penna, da Indústria e Comércio. Ele chegou a contar, com ar patético, que antes da convenção fora visitar Andreazza em sua casa, vizinha à de Maluf, em Brasília, e teve dificuldades para entrar “de tanta gente que havia à porta”. Depois, lembra Camillo Penna, ocorreu o oposto. “havia tanta gente na porta do Maluf que quase não consegui chegar à casa dele”. O comportamento observado por Camillo Penna não chega a ser espantoso, mas é o resultado de uma soma de atitudes corriqueiras nos políticos habituados a apertar a mão dos vencedores – como ele próprio.
“Andreazza”: 1 trilhão
Aluno bilhete no Colégio Militar, Andreazza foi um ministro que, dentro do governo, tinha a fama de tocador de obras – entregou a Pasta dos Transportes, por exemplo, depois de pavimentar 25.000 quilômetros de estradas de rodagem, o dobro de tudo aquilo que havia no país quando tomou posse. Construiu uma estrada que serviu de bandeira para o “Brasil Grande” do AI-5, a Transamazônica, mas fez uma ponte, a Rio-Niterói, que todos os dias é utilizada 150.000 pessoas. Numa época de crédito internacional farto, Andreazza firmou o currículo de maior tocador de obras do país desde Juscelino Kubitschek. Tanto nesse ministério como no outro, do Interior, Andreazza ficou à frente de atividades que mobilizaram muito dinheiro. Ele gastava tanto que, ao deixar o governo Figueiredo, em 1979, o ex-ministro Mário Henrique Simonsen cunhou uma moeda com seu nome, o “Andreazza”, para estabelecer a marca de uma grande fortuna em matéria de gastos públicos, estimada, na época, em 1 trilhão de cruzeiros – mais de 30 bilhões de dólares.
Modesto, pelos seus hábitos, e otimista, por temperamento, Andreazza era pessoa agradável de se conviver. Ele mantinha um padrão de vida pouco superior ao que lhe permitia o soldo de coronel da reserva – mas bastante inferior, por outro lado, ao dos donos e diretores de empreiteiras que fizeram negócios milionários graças às obras que ele construía. Sob o governo de Ernesto Geisel, o ex-ministro de uma das pastas mais ricas do governo foi obrigado a trabalhar para viver, com um emprego como vice-presidente da companhia Atlântica Boavista de Seguros. Consumidor de três maços de cigarros por dia, em 1986, Mário Andreazza descobriu que tinha um câncer no pulmão esquerdo. Chegou a fazer uma pequena cirurgia, para extrair um nódulo no pulmão. Mais tarde, a doença espalhou-se pelos gânglios e vias respiratórias. Internado no hospital Sírio Libanês, em São Paulo, nos últimos dias Mário Andreazza, aos 69 anos, submeteu-se a tratamento à base de quimioterapia. Quando concluíram que nada mais poderiam fazer para salvá-lo, os médicos cuidaram para que não morresse pelo bloqueio das vias respiratórias, bastante doloroso – mas de parada cardíaca, reforçando transfusões de sangue para forçar o coração a trabalhar. Com dificuldade para comunicar-se com as pessoas que o visitavam, na última terça-feira*, às 22 horas, sua mulher, Liliana, e os dois filhos, o engenheiro Mário Gualberto Andreazza, 41 anos, e o administrador de empresas Atílio Andreazza, 33 anos, aproximaram-se de sua cama. O ministro morreu abraçando sua família. Antigo chefe de uma pasta que movimentava bilhões de dólares, um grupo de amigos se cotizou para pagar o transporte, de avião, de seu corpo até o Rio.
* Terça-feira, dia 26 de abril de 1988.
Transcrito da Revista Veja, publicada em 27 de abril de 1988, ano 20, edição nº 17, páginas 26 e 27.